“variações infímas podem alterar irreversivelmente o padrão dos acontecimentos” Uma simples mistificação dos economistas americanos, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias, cientificamente dada a conhecer á Humanidade por Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Carta aos Republicanos

por João Medina* (publicada no JL)

“Perdoem-me, meus caros compatriotas de barrete frígio, que vos venha dizer com franqueza e sem quaisquer intuitos de desafio ou provocação, a dois anos do centenário da data de implantação da I República, que não sou, de modo especial, republicano ou monárquico, embora, como seria de esperar, embirre mais com o segundo do que com o primeiro, pois até vejo com desgosto (e certo desânimo de profissional do ensino universitário e da escrita da História) crescerem por aí aplausos suspeitos à vaga neoconservadora de rapaziada de Clio que porfia em branquear D. Carlos Simão de Sabóia Orleães & Bragança I, fazendo deste sibarita obeso e liberticida um “mártir da pátria” com direito a placa comemorativa do seu trespasse no sítio onde o duo trágico de matadores o abateu, homenagem que nem a monarquia de D. Manuel II, nem a Ditadura dos militares vindos de Braga, nem o glacial Minotauro chamado Salazar e nem o não menos taciturno dr. Caetano foram capazes de mandar pôr numa esquina da nossa capital.
O que, essencialmente, vos queria dizer, estimados republicanos, em termos simples, cordatos e benévolos de quem tem escrito e leccionado anos a fio sobre a Vida & Morte do republicanismo luso, é que não creio que valha a pena preparar, oficialmente, ou mesmo em meios académicos, a celebração dum mau defunto que foi esse regime de década e meia de vigência atarantada, e que, bem feitas as contas, teve nada menos do que 47 governos que a desgovernaram por trancos e barrancos, durante menos de 16 anos de atribuladissima e caótica duração, com muitas bernardas castrenses de permeio, sedições várias, tumultos constantes e quase sempre mais ou menos sangrentos, de atropelos à legalidade e ditaduras disfarçadas ou às escâncaras, sem falar da Ditadura das Urnas, com o “partido democrático” do dr. Afonso Costa (aquele homem de Direito que foi uma vez ao Porto, em 1902, com uma soqueira, para agredir à traição o Sampaio Bruno), mais uma participação em tudo funesta e catastrófica nos conflitos europeu e africano, e, por fim, uma degola que nos privou da Liberdade, com certa lógica fatal depois de tanta bagunça, desassossego, insensatez politica e falta de implementação mínima dum regime sério de Cidadania, Educação generalizada ou Progresso material, porquanto nem se educou o povo, nem se fez de cada português um cidadão livre, nem se melhorou a vida dos portugueses.

Foi esta situação anómala e em tudo desconforme com os santos ideias de Igualdade, Liberdade e Fraternidade apregoados pela Propaganda e prometidos nos comícios ao ar livre ao bom povo, que durou apenas década e meia, multiplicando tanta decepção, tanto erro, suscitando tantos dissídios e praticando as mais agrestes intolerâncias, expulsando do regime recém-criado os sacerdotes, a maioria dos militares, as mulheres e os operários, descontentando ainda a esmagadora base da média burguesia urbana que confiara no novo regime como radical despertar do país e resgate da grei embrutecida por séculos de despotismo, desprezo e incúria dos seus governantes.
Pagaram-se estes pasmosos erros, tão crassos e repetidos, duma estupidez política tão criminosa? Sim, pagaram-se com o confisco das Liberdades basilares por quase meio século e com a pavorosa atrofia geral do país, no seu corpo e na sua alma. Por isso não hesito em considerar que a nossa desgraçada I República foi um parêntese funesto, um mau presságio do que viria depois, em larga medida como consequência fatal de erros colossais que ela acumulou e agravou, com gente desastrada ou mesmo catastrófica, que levara o país para o atoleiro de 1926, gente mediocre e incapaz, cegos condutores de cegos.
Em 2010 vamos, em suma, celebrar o quê? O começo dum erro imenso e desastroso para o país que somos? A nova versão da comédia offenbaquiana da monarquia constitucional, agora em versão sanguinolenta? O desvio perverso da ideia libertadora que ao republicanismo europeu, desde 1789, encerrava? Não seria melhor, em vez de celebrarmos o 5 de Outubro, rezarmos-lhe um responso (laico) pela pobre alma penada que ele foi? Antes isso do que comemorar uma República sem republicanos, com a nossa é.

* João Medina, professor catedrático da Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa, historiador, ensaísta e ficcionista, dirigiu a História de Portugal e dirige a Revista Clio

 
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